Quando se fala em doenças causadas pela falta de saneamento, muita gente pensa só em diarreia ou dengue. Mas o problema é bem maior. Sem água limpa e coleta e tratamento de esgoto, aumentam os riscos de hepatite A, leptospirose, esquistossomose, febre tifóide, malária, cólera e diversas parasitoses intestinais, como giardíase e amebíase, entre outras. Todas elas têm um nome técnico: DRSAI, ou Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado. Dados do estudo “Saneamento é saúde: como a falta de acesso à infraestrutura básica impacta na incidência de doenças (DRSAI)” apontam 344 mil internações em 2024 e 11.544 óbitos no ano anterior. Este manual foi feito para mostrar quais são essas doenças, como elas se espalham e as formas de prevenção.
Bora entender mais sobre o impacto da falta de saneamento?
Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado
Onde não tem água tratada e esgoto coletado, tratado e destinado de forma correta, tem adoecimento. O saneamento é uma das medidas mais eficazes de prevenção em saúde, como mostram estudos históricos, relatórios da Organização Mundial da Saúde e dados oficiais brasileiros.
De acordo com levantamento do Instituto Trata Brasil, feito em 2025, o Brasil teve em 2024 mais de 344 mil internações por DRSAI. São casos evitáveis. Mais da metade dessas internações foram por dengue e outras doenças transmitidas por insetos vetores, mas quase 48% foram de doenças com origem feco-oral: ligadas diretamente à água contaminada e ausência de tratamento de esgoto.
As DRSAI não atingem a população de forma homogênea. São mais frequentes em áreas vulneráveis, onde faltam investimentos em infraestrutura e políticas públicas. O resultado é um ciclo perverso: adoecimento, sobrecarga do sistema de saúde e outros impactos negativos.
O estudo, feito com a consultoria Exante, traz a classificação das doenças relacionadas à falta de saneamento com base em um artigo de 1993. Os autores Cairncross e Feachem dividiram as infecções em quatro grupos principais: feco-oral, higiene, transmitida pela água e por meio de insetos vetores. E em dois agrupamentos menores: contato com as excreções humanas e disposição inadequada do lixo e relacionadas à habitação.
Classificação para as doenças provocadas pela falta de saneamento
A partir da classificação acima e dos casos mais frequentes no Brasil, a Funasa propôs, em 2010, uma seleção de doenças em razão da forma de transmissão e principais estratégias de controle. Essas doenças estão relacionadas ao saneamento ambiental inadequado por abastecimento de água deficiente, esgotamento sanitário inadequado, contaminação pela presença de resíduos sólidos ou condições de habitação precárias. Dessa forma, é possível determinar medidas de controle para cada grupo de doenças.
1 – Transmissão feco-oral
O principal ciclo de transmissão acontece quando as fezes contaminam a água. Quando não tratada, a água se torna um veículo importante para transmissão e aquisição de diversas doenças, que também podem ser chamadas de veiculação hídrica. Contaminadas, as fezes do paciente podem ter destino inadequado e contaminar o solo, propagando o ciclo de doenças. A mais comum desse grupo são as diarréias. Segundo um estudo do Trata Brasil, as doenças de transmissão feco-oral foram responsáveis por 49,1% do total de óbitos provocados pelas DRSAI em 2023. Foram 5.673 mortes.
Diarreias: uma doença que vem no plural devido aos diversos tipos de manifestação. As mais comuns são causadas por vírus, como o rotavírus, que podem ser transmitidas pela água. Mas existem muitas bactérias que podem causar diarréia, como salmonelas e as shigellas. Protozoários também estão entre as causas e um exemplo são as giárdias, além dos coccídios, como o cryptosporidium, que causam diarreia principalmente em crianças, e dos vermes, como é o caso da estrongiloidíase.
As diarréias geralmente não são casos isolados, pois as fezes do doente podem estar contaminadas por ovos que, se depositados no solo, vão se desenvolver e contaminar outras pessoas. É importante lembrar que a diarreia ainda é uma causa importante de mortalidade, principalmente entre crianças.
Cólera: doença infecciosa intestinal grave causada pela bactéria Vibrio cholerae, que se transmite através de água e alimentos contaminados. A doença causa diarreia intensa e prolongada, que pode levar à desidratação e, se não tratada, à morte.
Febres entéricas: são doenças bacterianas que ocorrem por meio da ingestão de água ou alimentos contaminados, chamadas de febre tifóide e paratifóide.
Hepatite A: doença aguda causada pelo vírus da hepatite A (HAV), que afeta o fígado. A infecção é geralmente transmitida pelo contato com fezes de uma pessoa infectada que não lavou as mãos corretamente, ou por meio da ingestão de alimentos ou água contaminados. Na maioria dos casos, a hepatite A não causa sintomas, mas eles podem ser cansaço, dor abdominal, náuseas e vômitos, febre e icterícia – pele e olhos amarelados.
Salmonelose: infecção bacteriana causada por bactérias do gênero Salmonella, que geralmente se manifesta como uma gastroenterite, com sintomas como diarreia, febre e cólicas abdominais. A infecção é transmitida principalmente pela ingestão de alimentos ou água contaminados.
Shigelose: doença infecciosa causada pela bactéria Shigella, que geralmente se manifesta com diarreia, dor abdominal, cólicas e febre, podendo incluir sangue, muco ou pus nas fezes.
Outros casos de diarréia:
- Infecções bacterianas: Escherichia coli, Campilobacter ssp., Yersinia enterocolitica e Clostridium difficile
- Amebíase
- Doenças intestinais por protozoários: Balantidíase, Giardíase e Criptosporidíase
- Isosporíase
- Doenças intestinais por vírus: enterite por rotavírus, gastroenteropatia aguda e enterite por adenovirus.
Segundo a Funasa (2010), as principais medidas de controle dessas doenças são: o abastecimento de água doméstico adequado, a educação sanitária, as melhorias habitacionais, a instalação de um sistema sanitário adequado antes do lançamento no meio ambiente.
2 – Higiene inadequada
São as doenças que acontecem por contato direto das secreções infectantes com os olhos e a pele, ou indiretas, por meio de toalhas, roupas e objetos contaminados. A falta de acesso adequado ao abastecimento de água tratada contribui para a ocorrência de doenças, pois não permite a higiene doméstica e pessoal de forma adequada.
Conjuntivites e tracoma: tanto o tracoma como as conjuntivites ocorrem pelo contato direto das secreções infectantes dos olhos, ou pelo contato indireto através de toalhas e roupas contaminadas. Assim, o acesso adequado ao abastecimento de água tratada é necessário para o exercício da higiene doméstica e pessoal.
Micoses: nome popular para as dermatofitoses, também conhecidas como tinhas, são infecções da pele, unhas e cabelos causadas por fungos chamados dermatófitos. Se alimentam de queratina e podem ser transmitidos por contato direto ou indireto com pessoas, animais ou objetos. Ocorrem pelo contato direto da pele em ambientes contaminados ou indireto por meio de objetos contaminados. Portanto, o abastecimento regular de água potável é condição fundamental para o controle dessas doenças.
3 – Transmissão pela água
No terceiro grupo de doenças estão aquelas transmitidas por meio do contato com a água, como a leptospirose e a esquistossomose. A causa são a água e alimentos contaminados, principalmente por fezes. Se as pessoas evacuam muito perto do local onde tomam banho ou bebem água, podem contaminar a água. A eliminação adequada das fezes é a principal medida de controle desse tipo de doença, assim como o abastecimento de água tratada e o controle ambiental de águas potencialmente contaminadas.
Esquistossomose: a transmissão ocorre por meio da penetração na pele ou mucosa bucal por meio do contato humano com água contaminada pelo parasita que se desenvolve em um caramujo.
Leptospirose: a doença é decorrência da transmissão de uma bactéria que é transmitida a partir do contato com a urina dos ratos. Em locais sem saneamento, a água entra em contato com a urina dos roedores que contaminada pela bactéria leptospira pode ser transmitida aos humanos. Essa contaminação da água com a urina se dá principalmente depois de enchentes e períodos de chuvas, e acaba aumentando a chance de infectar pessoas.
Cuidados
Se existem sintomas como diarréia, dores abdominais, enjoos e cansaço, é bom ficar atento e procurar um médico o mais rápido possível.
4 – Transmissão por meio de insetos vetores
Como o próprio nome diz, são doenças que ocorrem pela picada de insetos transmissores, como febre amarela, filariose e malária. Ambientes com esgoto a céu aberto e água acumulada favorecem a proliferação de vetores de arboviroses como dengue, zika e chikungunya, diretamente ligados à precariedade do saneamento. A principal forma de controle está relacionada a medidas como abastecimento de água, coleta e tratamento do esgoto e gestão adequada do lixo. Além disso, é necessária a educação sanitária para a redução dos criadouros dos mosquitos transmissores no meio ambiente.
Dengue: doença que infecta milhares de brasileiros todos os anos. Embora não tenha o mesmo ciclo oral-fecal que a maioria das doenças causadas por falta de saneamento básico, essa enfermidade é transmitida por meio de mosquitos infectados, principalmente o Aedes aegypti, que se desenvolvem em água parada. Os sintomas incluem febre alta, dor de cabeça, dor atrás dos olhos, dor nas articulações e músculos, e manchas vermelhas na pele. Para manter a dengue longe da sua família, é crucial eliminar os criadouros do mosquito, como água parada em recipientes.
Chikungunya: é causada pelo vírus de mesmo nome que pode ser transmitida pelos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus (mesmos que transmitem a dengue e a febre amarela, respectivamente). O nome é uma referência à aparência curvada dos pacientes em uma epidemia na Tanzânia, na África, em torno de 1952. A principal diferença entre a dengue e a chikungunya é a dor nas articulações, muito mais intensa na chikungunya, afetando principalmente pés e mãos, geralmente tornozelos e pulsos.
Doença de Chagas: a transmissão primária da doença de chagas é vetorial e ocorre por meio das fezes dos triatomíneos, que defecam após o repasto, eliminando formas infectantes do parasita, que penetram pelo orifício da picada ou pelo ato de coçar. As medidas de controle se dão pela melhoria das habitações rurais onde ocorre a proliferação do vetor.
Febre Amarela: doença infecciosa febril aguda, com elevada letalidade nas suas formas graves. A doença é causada por um vírus transmitido por mosquitos Aedes albopictus, e possui dois ciclos de transmissão: urbano e silvestre. Os últimos casos urbanos registrados foram em 1942, o ciclo atual é do silvestre, sendo os gêneros Haemagogus e Sabethes os mais importantes transmissores. Os sintomas incluem febre, dores no corpo, calafrios, náuseas e vômitos.
Filariose linfática: também conhecida como elefantíase, é uma doença parasitária causada por vermes (nematódeos) que afetam o sistema linfático, podendo causar inchaço e deformidades, principalmente nos membros, seios e bolsa escrotal. A transmissão ocorre através da picada de mosquitos infectados.
Leishmaniose: é causada por um protozoário e está relacionada ao desmatamento, que permite contato com focos zoonóticos. Sua principal forma de controle inclui o ordenamento de assentamentos próximos às florestas para evitar o desequilíbrio ambiental, além do controle e eliminação de focos de contaminação que podem facilitar a transmissão a humanos.
Malária: doença infecciosa febril causada por um parasita do gênero Plasmodium e transmitida pela picada de mosquitos Anopheles infectados. A gravidade da malária varia de acordo com a espécie do parasita. Os sintomas são calafrios, febre e sudorese, ocorrendo geralmente algumas semanas depois da picada. É fundamental procurar um profissional de saúde para diagnóstico e tratamento adequado, especialmente em áreas endêmicas da doença. Existem medicações preventivas que podem ser tomadas antes, durante e depois da viagem.
Zika: assim como a dengue, também é transmitido por meio da picada do mosquito Aedes aegypti infectado com o vírus. Já foi documentada a transmissão por via sexual. A maioria das pessoas infectadas é assintomática, mas pode haver sintomas como febre baixa, erupção cutânea, conjuntivite, dores musculares e articulares, mal-estar ou dor de cabeça. Não há medicamentos específicos para tratar o Zika, por isso a prevenção é o melhor caminho.
5 – Contato com fezes no solo e lixo
São as doenças causadas pelo contato com fezes que englobam os vermes e ocorrem por solo contaminados. Além disso, a disposição inadequada do lixo também permite a proliferação de microrganismos que transmitem doenças por meio de vetores como moscas ou roedores.
Helmintíases: grupo de doenças que engloba todos os vermes de formas e tamanhos variados. A principal forma de transmissão ocorre pelo solo contaminado. O controle deve ser feito com a instalação de fossas sépticas ou rede coletora de esgoto, o tratamento das excretas antes da aplicação no solo, o abastecimento de água doméstico e a educação ambiental.
Do grupo de helmintíases fazem parte:
- Equinococose
- Ancilostomíase
- Ascaridíase
- Estrongiloidíase
- Tricuríase
- Enterobíase
- Teníases
- Cisticercose
6 – Condições de habitação
Estão relacionadas à localização da moradia, à higiene do local, às condições de ventilação, que podem favorecer as doenças respiratórias e características da construção, com favorecimento de ratos, insetos e outros animais transmissores de infecções.
A relação das doenças com internações hospitalares
Saneamento é saúde. Acesse o estudo completo “Como a falta de acesso à infraestrutura básica afeta a incidência de doenças relativas ao saneamento inadequado no Brasil”, clicando aqui, e saiba mais.
Texto: Rosiney Bigattão
Fontes:
https://tratabrasil.org.br/doencas-falta-saneamento-11-mil-mortes-brasil/