Da Ilha das Flores, no Rio Guaíba, à Genebra, na Suíça, o exercício de compreender a importância do saneamento básico em nossas vidas.
Corria o ano de 1980. Custo a crer. Resisto à ideia de dizer, mas foi no século passado e parece que foi ontem. O IBGE contratava estudantes universitários para cumprir uma tarefa essencial: coletar dados que ajudassem a compor uma pesquisa demográfica capaz de traduzir com mais nitidez a fotografia do Brasil daquele momento. Me candidatei e fui. A grana era boa. Eu ganharia, em duas semanas de trabalho, mais do que recebia por mês da mesada dos meus pais. Não fazia ideia do que fosse a Ilha das Flores e o universo que lá existia.
Eu era um jovem aspirante a jornalista, cursando os primeiros semestres do curso de Jornalismo da Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Quando desembarquei na Ilha, no primeiro dia, me assustei. Ela se reduzia a uma montanha de lixo, cheia de casebres, rodeada pelas águas do rio Guaíba por todos os lados. Entre as casas, o lixo e o rio Guaíba, havia uma quantidade imensa de gente. Homens, mulheres, crianças, adultos, idosos. E mais. Animais de tração e, claro, barcos. Eram eles a matéria-prima da minha pesquisa.
O impacto da falta do saneamento
O impacto daquela primeira imagem ainda não havia passado por completo, e o coração ainda se mantinha acelerado. Mas a curiosidade jornalística de alguém que começava a experimentar a fase adulta da vida, a ousadia dos incautos e a inclinação à poesia eram as armas de que eu dispunha para tentar compreender o que aquilo tudo significava. E, dessa forma, assimilar a preciosa missão que o contrato com o IBGE me impunha. Saber o que passava na cabeça daquelas pessoas que viviam ali. O que era essencial? Como se organizavam? Em que condições moravam? O que bebiam, o que comiam, como tratavam os problemas de saúde? Do que tinham medo? Se eram felizes e o que esperavam da vida?
“Foi a primeira vez que lidei, conscientemente, com um conceito tão comum nos dias de hoje: a vulnerabilidade. Naquele momento, não tinha como saber ao certo a dimensão que havia para além do sentido vernacular daquela palavra. O que eu via na superfície já era suficiente para me assombrar. Mas a minha missão era maior e mais trabalhosa do que gastar tempo com a profundidade semântica dos conceitos. Era preciso desconsiderar a absoluta falta de condições mínimas de higiene para enxergar as vidas que estavam para além daquilo tudo.”
Era necessário vencer o coletivo de moscas que dificultava a abertura da boca para fazer as perguntas e descobrir o que era essencial para aquela comunidade. Era imprescindível suportar o odor do lixo, que exigia alta concentração para enganar o mal-estar do estômago e descobrir que fórmulas usavam para sobreviver a tanta desigualdade.
A esperança que ajuda a enfrentar realidades difíceis
Apesar da dura realidade, houve espaço para ver alguma beleza naquelas cicatrizes. Percebi crianças brincando com arremedos de brinquedos como se estivessem numa Disneylândia. E conheci uma gente esperançosa, com uma nesga permanente de brilho nos olhos, mesmo diante das agruras impostas por aquela dura realidade.
Foram duas semanas que nunca mais saíram da minha memória. Dei minha contribuição à pesquisa e, em troca, muito mais do que dinheiro, ganhei um salto vivencial. Fiz amigos, superei medos, aprendi a ter fé na vida e nos homens – como na canção de Gonzaguinha – e ampliei o alcance do meu senso de solidariedade.
“Aquela gente que tirava do lixo o seu sustento me ensinou muito mais do que eu esperava aprender na faculdade. Vieram dali as primeiras noções da importância da reciclagem. Percebi que o lixo de uns poucos guardava o necessário para a sobrevivência de outros. Muitos outros. Foi ali também que comecei a compreender de forma mais nítida o valor do saneamento básico e do que ele, ou a falta dele, significa em nossas vidas.”
A realidade sanitária do Brasil
A cada dia, entre a ida à Ilha das Flores e a volta para casa, minha cabeça não parava de pensar naquelas pessoas, em suas necessidades e na coragem para enfrentar uma vida de sacrifícios. Nunca mais voltei lá depois disso. E já são 45 anos de distância entre o lá e o agora. Tempos mais tarde, em 1989, a Ilha das Flores tornou-se nacionalmente conhecida pelas lentes do ensaio cinematográfico de Jorge Furtado, que misturou ficção e realidade para sustentar um enredo de desigualdade social explícita. O curta-metragem que ele fez com o apoio da Casa de Cinema de Porto Alegre venceu prêmios e virou um clássico do cinema nacional. A Ilha nunca mais saiu de mim.
Hoje, quando abro o computador com o desafio de escrever sobre a realidade sanitária do Brasil, a Ilha das Flores invade o meu pensamento outra vez. Quem viveu aquela realidade tinha zero de saneamento à disposição. Sem água potável e sem tratamento de esgoto, os índices de doenças por veiculação hídrica, incluindo leptospirose, cólera, hepatite A e febre tifóide, eram altos. No Brasil de agora, os dados são outros. Houve avanços consideráveis de lá para cá. Mas a realidade ainda nos impõe desafios que seguem submetendo milhões de brasileiros a uma situação de vulnerabilidade extrema, aumentando os gastos com internação hospitalar e, o que é pior, custando muitas vidas.

Vem Com a Gente está transformando a vida dos moradores
O Rio Grande do Sul, estado que abriga em si o rio Guaíba e a Ilha das Flores, começa a viver um novo momento no saneamento. Segundo os indicadores do Instituto Trata Brasil nas capitais, Porto Alegre subiu cinco pontos percentuais do ranking de 2023 para o de 2024. A cidade ocupa a oitava posição entre as 26 capitais brasileiras segundo o Ranking de Competitividade dos Municípios 2024 do Centro de Liderança Pública (CLP Brasil), feito a partir do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), ano-base de 2022.
Resultado dos investimentos recentes feitos na rede de serviços, a melhora também é percebida no interior do estado. A Corsan, Companhia Riograndense de Saneamento, que atende 317 municípios e está sendo administrada pela Aegea, está levando para as cidades atendidas o Vem Com a Gente. Premiado em 2023 na certificação Guardiões pela Água, do Pacto Global da ONU no Brasil, o projeto leva serviços de saneamento e ações sociais para áreas vulneráveis.
“Não sabia nem o que era tomar banho de chuveiro”, conta Clayton, morador do Umbu, bairro de Alvorada (RS). Na cidade onde ele vive, mais de 41 mil moradores foram atendidos pelo Vem Com a Gente e estão tendo suas vidas transformadas pelo saneamento.
“A Corsan veio aqui, colocou água para nós e eu sei o que é tomar um banho de chuveiro, limpar uma casa decente e manter a alimentação das crianças com água boa.”
Mas ainda há muito a ser feito: os gaúchos convivem com um grande volume de esgoto não tratado – são 449 piscinas olímpicas de dejetos in natura descartados na natureza todos os dias. Em Santa Catarina são 340, e 154 no Paraná. Em todo o país, segundo o Trata Brasil, são mais de 5 mil. E o dado que mais me remete de volta às cenas que vi na Ilha das Flores, 45 anos atrás: no Rio Grande do Sul, 17 mil moradias seguem sem ter banheiro.
A falta de acesso a serviços de saneamento básico, por mais grave que seja, sofre de um descaso crônico de administradores que apostam na política de superfície. Aquela em que segue prevalecendo a tese de que investimento que fica embaixo da terra não aparece e, portanto, não dá voto.
A sobrecarga no sistema público de saúde
Esta forma perversa e anacrônica de ignorar a importância e eficácia do saneamento básico explica, em parte, os baixos índices de saúde no país e seus efeitos na qualidade de vida dos brasileiros.
Em 2022, a falta de saneamento básico foi a principal razão da sobrecarga do sistema público de saúde. Foram quase 192 mil internações por doenças de veiculação hídrica. Isso custou ao SUS algo perto de R$ 87,6 milhões, dinheiro que poderia impulsionar outras melhorias sociais, mas que foi gasto para dar solução a problemas criados pela falta de saneamento.

As condições sanitárias do outro lado do oceano
Eliane Fernandes nasceu em Goiânia e vive em Senador Canedo, município próximo à capital de Goiás que, de acordo com o censo do IBGE de 2022, tem aproximadamente 155 mil habitantes. Casada, mãe de quatro filhos – dois homens e duas mulheres –, Eliane tem noções básicas de alemão, é fluente em francês e ganha a vida como diarista. Um dia, cansada da vida que levava por aqui, decidiu aventurar-se pelo mundo.
“Peguei um voo numa companhia aérea que eu nem sabia dizer o nome direito, mas eu estava decidida, queria melhorar de vida”, diz ela. A companhia aérea era a Lufthansa, e o desembarque foi em Zurique. Eliane foi trabalhar como diarista, primeiro na Alemanha, depois em Genebra, na Suíça. Passados os dois primeiros anos falando francês e cuidando da limpeza das casas, Eliane foi para Portugal, onde ficou por mais sete anos. Sua filha mais nova, inclusive, nasceu em Portugal. Mas a saudade do Brasil falou mais alto, e, em 2011, ela decidiu que era hora de voltar.
De volta ao Brasil: a vida sem os serviços básicos
Dos tempos em que viveu na comunidade europeia, Eliane lembra muito das condições sanitárias. Uma recordação que faz os olhos brilharem.
“Por mais pobre que seja por lá, todo mundo tem banheiro dentro de casa. Tem água encanada e rede de esgoto. As ruas são limpinhas… não se vê um papel de bala no chão, as pessoas não ficam doentes toda hora.”
Uma realidade bastante diferente da que encara hoje, em Senador Canedo. “Aqui quase não tem rede de esgoto e ainda existe muita fossa nas calçadas, apesar de já haver uma lei da Prefeitura proibindo essa prática. As pessoas que não têm espaço no quintal para cavar uma fossa fazem isso clandestinamente, na calada da noite. Aí, quando amanhece o dia, já está lá uma fossa instalada na calçada”, relata.
Eliane não está errada. Dados do IBGE mostram que mais de 20 mil pessoas, o equivalente a 13,3% da população de Senador Canedo, não têm água tratada. O dado é ainda mais grave quando a questão é a rede de esgoto: cerca de 151 mil pessoas, ou 97,1% da população, não contam com rede de esgoto. Em 2022, uma pessoa morreu e outras 146 foram hospitalizadas por conta de doenças de veiculação hídrica.
“Da minha experiência lá fora, concluo que ter acesso a água tratada e rede de esgoto é algo imprescindível. Você imagina, a maioria das pessoas daqui que têm fossa no quintal também tem o costume de manter uma hortinha ali bem perto. O risco de contaminação desses alimentos é muito grande, e isso, no final, é o que faz as pessoas ficarem doentes.”

A urgência da universalização
José Walter Vazquez é um executivo com mais de 20 anos de experiência em Relações Governamentais com o setor privado e tem profundo conhecimento do funcionamento dos poderes Executivo e Legislativo. Ex-diretor Executivo da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa), ele acredita que a preocupação de Eliane faz todo sentido.
Na opinião dele, o desafio da universalização dos serviços de água e esgoto no Brasil talvez seja a mais importante batalha da sociedade na busca por padrões de saúde e qualidade de vida para sua população.
Caminhos possíveis: o Novo Marco Legal do Saneamento Básico
Por ser um serviço de competência municipal, por muitos anos as intervenções no setor foram esparsas e com poucos ganhos de escala. Após uma longa tramitação e um debate que envolveu praticamente todos os atores do setor de saneamento, o Congresso Nacional conseguiu votar o Novo Marco Legal do Saneamento Básico, sancionado pelo Presidente da República em 15 de julho de 2020, transformando-se na Lei Nº 14.026.
“Naquele momento, o Brasil tinha uma população maior do que a da Alemanha que sequer tinha acesso à coleta de esgoto. Além disso, quase 40% da água produzida se perdia em vazamentos e ligações clandestinas na rede de distribuição. A regulação era esparsa e bastante refratária a parcerias com o setor privado. Dentre as mudanças que buscavam dar uma ordem regulatória ao setor, a lei redefiniu o papel institucional da Agência Nacional de Águas (ANA), concedendo-lhe competência para adotar padrões de qualidade e eficiência, regular tarifas e definir metas de universalização, entre outros”, relata José Walter.
Dessa forma, foram criadas as condições para que os players do setor pudessem contar com normas de referência para o balizamento de seus investimentos, regras de tarifas e padrões de qualidade e eficiência dentro de uma certa padronização e transparência. O fim do modelo de contrato de programa abriu uma gama de oportunidades de investimento ao setor privado, bem como a possibilidade de ganhos de escala e racionalização do uso dos equipamentos das empresas prestadoras de serviços.
“Para termos uma ideia da magnitude dos desafios e, sobretudo, dos benefícios que o enfrentamento dessa questão pode trazer à nação, o Instituto Trata Brasil publicou em seu site um estudo bastante representativo. O Estado do Pará, que será palco da COP 30, tem 8 milhões de habitantes, dos quais quase 4 milhões não têm acesso a água potável e mais de 7 milhões vivem sem coleta de esgoto.”

Saneamento salva
Um outro estudo, intitulado “Benefícios Econômicos e Sociais da Expansão do Saneamento no Pará”, abrange o período de 2023 a 2040 e traz dados ainda mais reveladores. Ele estima que a economia total, devido à melhoria na saúde pública, pode alcançar R$1,5 bilhão nesse período. Estamos falando da redução de custos com o tratamento de doenças associadas à falta de saneamento, como diarreia, vômito e infecções respiratórias.
Um exemplo recente vem de Campo Grande (MS), onde os investimentos em saneamento resultaram na queda de 97% nas internações hospitalares decorrentes de doenças de veiculação hídrica entre crianças até quatro anos (veja detalhes do estudo clicando aqui). COLOCAR LINK. Além de ganhos sociais, como crianças mais saudáveis e com melhor desempenho escolar, há também um impacto significativo na valorização dos imóveis inseridos em áreas com saneamento básico.
“Esse é um pequeno exemplo do que a sociedade brasileira pode ganhar com a mobilização do poder público e da iniciativa privada na construção de um novo patamar de saúde dentro de um processo regulado, com metas claras de ampliação e universalização, transparência e controle social.”
Volto os olhos no tempo, revisito as imagens da Ilha das Flores, que não me saem da cabeça. Custo a me convencer, quase meio século depois, do quanto segue atual o filme de Jorge Furtado. Fecho os olhos. Penso comigo na essência da frase composta exclusivamente por duas palavras: Saneamento salva. Busco enxergar a poesia possível na invisível rede subterrânea, que, ao mesmo tempo em que trata as impurezas do esgoto, faz chegar a milhões de pessoas a preciosidade da água tratada. Enxergo o copo pela metade sobre a mesa. A parte vazia é inevitável. Há tanto ainda por fazer. Mas meus olhos insistem em considerar o volume que me enche de esperança e mata a sede de seguir acreditando. Sim, saneamento salva.
Texto: Inorbel Maranhão Viegas – jornalista, escritor e poeta.
Fontes:
IBGE
Instituto Água e Saneamento – Dados do município de Senador Canedo.
Instituto Trata Brasil
Marco Legal do Saneamento Básico – Lei Nº 14.026/2020
https://globoplay.globo.com/ilha-das-flores/t/5ZspqLtvfV/
CLP – Ranking de Competitividade dos Estados e dos Municípios.