O mal invisível da falta de saneamento na sociedade brasileira

Nas mais de quatro décadas dedicadas à saúde pública, vi de perto a persistência de doenças ligadas à água sem tratamento. Enfermidades como a esquistossomose ainda são comuns em áreas com esgoto a céu aberto, principalmente no Nordeste. Em Porto de Galinhas, por exemplo, colegas da Fiocruz identificaram o Schistosoma em situação de infecção ativa em áreas próximas ao município. Enquanto não se propiciar que os municípios tenham o saneamento básico, de eliminação de dejetos e acesso à água potável — que ainda é um problema que muitas dessas populações ainda não têm —, não vamos conseguir superar essas doenças.

Ainda temos mortalidade dessas diferentes formas causadas por diferentes patógenos, inclusive no Sudeste, onde supostamente há maior infraestrutura, mas as gastroenterites são as predominantes nos casos graves que levam, hoje, à mortalidade. Mesmo com a redução dos casos mais graves, pessoas ainda morrem por doenças que poderiam ser evitadas com saneamento. E isso é inaceitável.

O verdadeiro vetor: a ausência de saneamento

No Brasil, muitas das doenças endêmicas – aquelas que persistem de forma contínua em determinadas regiões ou populações, estão diretamente associadas à precariedade do saneamento. O ciclo de contaminação se mantém quando pessoas infectadas eliminam fezes em locais inapropriados, como rios, canais e praias. O Schistosoma, parasita causador da esquistossomose, sobrevive no ambiente e continua infectando outras pessoas. Mas, na verdade, o saneamento precário é o verdadeiro vetor da doença.

Em períodos de chuva, o cenário piora. A leptospirose, transmitida pela urina de ratos, é uma ameaça real em cidades como São Paulo, uma das mais urbanizadas do planeta. A bactéria sobrevive na água das enchentes. Basta um contato com a pele para a infecção acontecer. Mesmo em centros urbanos com alguma estrutura, como é o caso da capital paulista, a exposição a áreas alagadas representa risco.

O que fazer sem acesso ao saneamento?

Quando não há água tratada, a recomendação segue a mesma de décadas atrás: ferver. A fervura continua sendo o meio mais seguro de eliminar vírus, bactérias e parasitas. A orientação vale também para lavar verduras ou higienizar utensílios, pois se a água não for potável, ela pode contaminar os alimentos.

Mas medidas emergenciais não são suficientes: políticas públicas robustas e contínuas são o único caminho. O tema, infelizmente, ainda avança com lentidão. Falta prioridade política. Viadutos e pontes ganham mais atenção que redes de esgoto, porque estas ficam enterradas — fora da vista e, para muitos, fora das prioridades.

É preciso ação

A região tropical em que vivemos traz desafios constantes. Sempre fui um curioso e um apaixonado por estudar. É um orgulho enorme ter propiciado novos conhecimentos sobre a epidemiologia dessas doenças, com novos dados sobre os vetores, os reservatórios, o diagnóstico e a diversidade dos parasitas. É empolgante ver o quanto podemos contribuir para esses novos entendimentos.

Mas, por outro lado, é muito triste e desconfortável lidar com a realidade do saneamento no Brasil. A gente sabe que o país já poderia ter superado essa questão. Estamos localizados em região tropical, e as mudanças climáticas agora irão afetar ainda mais. Mas esse quadro da questão sanitária já teria sido mitigado se estivéssemos em um patamar mais avançado. A gente convive com situações seculares de precariedade. Isso poderia ter avançado. Evidentemente, precisa de investimentos, pois essas doenças, muitas vezes negligenciadas, se tornam emergências quando se espalham sem controle. O conhecimento científico, por si só, não basta. É preciso ação.

Saneamento como símbolo de dignidade

Ver a água potável chegando às casas, junto com o esgoto tratado, é um símbolo de dignidade. Um bom saneamento e água potável são tão importantes quanto a comida. É preciso que as pessoas tenham água de boa qualidade para preparar seus alimentos, para que tenham, em sua subsistência, uma qualidade de vida que propicie uma melhor condição de saúde, evitando várias dessas doenças. Saneamento é saúde: onde ele chega, a saúde melhora, a autoestima da comunidade se eleva e as pessoas se sentem respeitadas.

Sinval Pinto Brandão Filho

Sobre o autor

Sinval Pinto Brandão Filho, 65 anos, é natural de Campina Grande (PB). Graduado em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), concluiu doutorado em Biologia da Relação Patógeno-Hospedeiro pela Universidade de São Paulo (USP) em 2001. É pesquisador titular do Instituto Aggeu Magalhães (IAM/Fiocruz), atuando nas áreas de parasitologia e saúde pública, com foco na ecoepidemiologia de doenças parasitárias.

Pesquisador do CNPq, coordena o Laboratório de Referência em Leishmanioses do IAM e preside atualmente a Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Suas linhas de pesquisa incluem ecoepidemiologia da leishmaniose tegumentar e visceral, além da biologia de hospedeiros reservatórios e flebotomíneos vetores. Ao longo da carreira, organizou e presidiu eventos científicos de grande impacto.